Amo (eu e o mundo), os textos da Martha Medeiros. Tenho quase todos os livros dela. Aconteceu um acidente doméstico e um dos livros estragou. Ontem à noite, voltando para casa, passei no Shopping para comprar um novo. Abrindo os livros dela, li, aleatoriamente, uma crônica que não lembrava mais e que falava sobre a mesa da cozinha. A crônica não saiu mais da minha cabeça e pensei que vocês adorariam ler (ou reler, como eu fiz) e ficar pensando em que tipo de mesa vocês gostariam de compartilhar conversas e sonhos? Lembrar das mesas que já passaram por nossas vidas. É meu tema de hoje…
O texto:
A mesa da cozinha é o local sagrado das conversas durante a madrugada, quando os irmãos chegam da balada com fissura por um gole de Coca-Cola e com histórias saindo pela boca: com quem ficaram ou não ficaram, o trajeto que fizeram para driblar a blitz, o preço da cerveja, e aí as amenidades evoluem para a filosofia, a necessidade de extrair da vida uma essência, a tentativa de escapar da insignificância, até que o dia começa a clarear e o cansaço avisa que é hora de ir para a cama.
Para alguns casais, a mesa da cozinha já serviu de cama, aliás.
A mesa da cozinha ouviu confissões de amigas que juraram guardar segredo, mas não conseguiram. O amante, a traição, a culpa, o nunca mais. A mesa escuta e não espalha, reconhece a inocência das fraquezas alheias e se sente honrada por ser confidente de tantas vidas.
A mesa da cozinha escutou o que os convidados não comentaram na sala, viu estranhos abrirem a geladeira atrás de algo mais substancial que canapés, suportou o peso de quem resolveu sentar sobre ela para fumar um cigarro antes de voltar para o burburinho da festa.
A mesa da cozinha já foi cenário de toda espécie de solidão.
Mas também de encontros. Viu o casal de namorados preparar, sem receita, seu primeiro salmão ao molho de manga, viu o menino nervoso abrir sua primeira garrafa de vinho para uma menina não menos nervosa, viu um beijo secreto entre primos, cuja família comemorava o Natal em torno da árvore, viu o marido se declarar para a esposa viciada em grifes ao surpreendê-la com um simples avental amarrado em torno da cintura.
A mesa da cozinha viu a mãe esquentar a primeira mamadeira às três da manhã, com cara de sono e felicidade. E o pai da criança, a caminho da área de serviço, segurando uma fralda suja com expressão de nojo, mas também de orgulho.
A mesa da cozinha viu a funcionária sentar no banquinho e, durante uma trégua entre um suflê e um pavê exigido pela patroa, acariciar sua primeira carteira de trabalho.
A mesa da cozinha viu o cachorro xeretar a lata de lixo e o gato lamber os restos que sobraram na louça do jantar. A mesa da cozinha viu a dona da casa tentar escrever um diário, coisas que ela sente e que não tem com quem dividir, a não ser com a luz amarelada do abajur.
A mesa da cozinha testemunhou lágrimas que foram secadas com o pano de prato. A mesa da cozinha possui manchas que contam histórias. A mesa da cozinha tem um pé frouxo que ninguém se lembra de aparafusar.
A mesa da cozinha já amparou carteados, velas acesas em dia de temporal, cinzeiros abarrotados, a roupa passada e dobrada antes de ir para as gavetas. A mesa da cozinha viu tudo.
Do livro “A graça da coisa”, Martha Medeiros.
Beijo, Malu
Deixe seu comentário